sexta-feira, julho 30, 2004

Saudade...


Ele queria vê-la. Agora. Ele queria procurá-la, abandonar-se aos passos dela, perseguir a respiração de quem tinha tanto para lhe dizer. Queria perder-se e encontrar o caminho de volta para os lábios dela. Tinha-lhe roubado um sorriso, a medo, primeiro. Depois vieram outros, claro, mas apenas de quando em vez, aleatoriamente, durante muito tempo. Agora todos os dias recebia cartas e encomendas cheias de sorrisos "com muita luz lá dentro". Mas não chegavam, era preciso ir buscar outros sorrisos, aqueles, os primeiros. Depois mais e mais sorrisos, juntá-los aos mais recentes e deixá-los repousar. Repousar? Estranhou. Repousar não! Não se deixam repousar sorrisos! Eles são para se usar, não para guardar num sítio qualquer. Mas agora não era mesmo tempo de usar sorrisos, por isso guardou-os, não num sítio qualquer. O coração não é um sítio qualquer. Serve para guardar sorrisos, entre outras coisas. Tudo o que lhe dizia respeito ele guardava no coração. É o sítio mais seguro, é uma caixa-forte, mas não serve para pôr dinheiro. Não o coração. Lá estavam os lábios dela, os olhos dela, o cabelo, os ombros, os "pois..." dela. Tudo vivia no coração dele, numa agradável e apaixonada vizinhança.

Mas ele queria vê-la. Agora. Agora e sempre. Como o coração não vê, tem de confiar nos que os olhos vêm. "Mas afinal o que é o coração?" - perguntei-lhe. "Não sei." Pois. Ele também não sabia. Sabia só que ele lá estava quando a queria ver. E agora lá batia ele, quase saltando do peito, como se o quisesse desafiar numa corrida, para ver quem chegava primeiro. Pena é que quando assim acontece, nenhum tenha a sorte de ser o vencedor. Ou existe um à partida ou então perdem os dois. Quis andar, caminhar sozinho, ver ninguém cruzar-se com ele. Mas onde podia fazer isso? Dentro dele. Mas como, se a tinha guardado no coração? Não podia estar sozinho. Será que queria mesmo? Não. Ele queria vê-la. Agora. Sentia-lhe as mãos procurarem pelas dele. Irresistívelmente caminhando um para o outro, como duas personagens dos "Episódios da Vida Romântica". Ele próprio via-se como um romântico, mais do tipo fatalista. Queria falar com ela. Vê-la. Não dava. Faltavam alguns minutos e uns pares de segundos. O tempo voava, passava a correr, levado pelo vento leve dos dias quentes de fins de Julho, apenas abrandando com as cores profundas de um pôr-do-sol de Verão. Ele queria vê-la. Correr para ela!

Deixar tudo para trás... "Tudo"? O que era tudo? Mesmo tudo ou quase tudo? Se ficasse com ela, ficaria com mais alguma coisa. O que era bom, no fim de contas. Deixar tudo para trás não era afinal tão mau. O que choca é a radicalidade do "deixar tudo". E ele estava assustado. Não me disse, mas eu sabia que sim, embora ninguém o compreendesse. Quem conseguia prever o que ele pensava, saberia naturalmente que o que ele queria era ser feliz. E ele via uma oportunidade de o ser, pelo menos muito mais tempo do que até então tinha sido. Isso, sim, seria um grande feito! Ele queria tê-la, vê-la todos os dias, olhar para ela indefinidamente, apesar de já não sobrarem nem minutos nem segundos para isso. Pela noite dentro ele chorava. De dia, de noite, chorava. Sozinho. Quando não chorava, desesperava. Friamente, pois ele tinha mudado, aprendera a mostrar muito menos os seus sentimentos, a não mostrar logo as cartas todas. Continuava a sentir muito, claro, mas sabia dosear, embora muito lhe custasse, aquilo que tinha para dizer.

Toda a noite pensava. Ou sonhava. Vivia com tanto "SE..." que chegou a pensar mudar de morada, para um lugar com inquilinos mais calmos e que não levantassem tantos problemas. Mas não. Quis ficar, teria de ficar, pois sabia que no fim de tudo sempre aprenderia qualquer coisa. Mas ele queria vê-la. Ele disse-me, uma noite em que saímos. Isso bastou para que eu perebesse exactamente o que ele verdadeiramente queria e sentia. Queria não ter de se ir embora, queria ficar com ela, queria os amigos... E não queria escolher, porque para ele não se tratava de uma escolha, mas para os outros sim. Depois, foi dormir. Mas dormiu pouco nessa noite. Quase nada. Quando acordou quis vê-la, abraçá-la, olhar para ela como da primeira vez, quase há dois anos atrás. Faltavam ainda menos minutos e quase segundos nenhuns. Era uma contagem descrescente, como a do Ano-Novo, mas não era patrocinada pela Super-Bock. Esta foi patrocinada por lágrimas. Muitas. Se ela gritassem, teriamos de usar algodão nos ouvidos, tal seria o berreiro...

Levantou-se, foi à janela ver se o dia lhe sorria. Mas acabou por não prestar atenção, vidrou os olhos na voz distante mas forte que se apoderara do tímpano, como quem abraça estupidamente um peluche e não o larga. Voltou depois ao novelo que era tudo aquilo que sentia. Voltou a tentar explicar-se, sempre contando com o verde de que se tingia o coração quando sentia que a queria ver. Umas vezes vermelho, outras verde. Sorria sempre que pensava nisto. E aí fica tudo explicado - se ele era assim, também o eram todos os que, como ele, vivam no país da bandeira verde e vermelha. Todos, apenas uns disfarçam melhor que outros.Despediu-se. Quis vê-la um segundo depois. Mandou-lhe uma mensagem, enquanto via televisão. Estou mesmo a imaginá-lo sentado no chão, perto da televisão, de telemóvel na mão, a pensar no que havia de dizer. Não foi difícil. Não teve resposta, mas porque ela não tinha dinheiro. "Melhor assim", disse-me: "Assim pensa mais tempo no que lhe escrevi." Mas ela não sabia de nada... Ele percebia-a, eu sabia. Custava-lhe tanta indecisão, eu sei que custava, mas ele sabia esperar.

Anoiteceu - e ele saiu. Não queria estar em casa, porque em casa podia chorar. Assim, na rua, sabia que não chorava, e isso dava-lhe segurança. Suspirava sempre, de olhar vago e perdido. Estava revoltado. Tinha-se revoltado, tinha esperneado, gritado, mordido os lábios, mas ninguém vira... Não dormiu durante duas noites. Queria vê-la, seguir-lhe os passos, concentrar-se em cada madeixa de caracóis, correr, navegar, estar com ela sempre! Ele queria. Muito. Já não acreditava em "amar". Tinha conseguido. Sempre lutara para deixar de amar. Já não se ama. Já não se chama "amar"... Simplesmente não se dá nome. Há coisas que não devem ter nome. Mesmo ela não devia ter nome. Bastava-lhe sorrir. Esse devia ser o nome dela, ou quem sabe um olhar, um beijo... Ele queria vê-la. Muito. Ele não. EU queria vê-la! Sempre! E grito, e chamo por ela, mesmo que não venha. Não me esqueço, não... Nunca. Choro, também. EU quis correr-lhe os passos, dar-lhe as mãos, tê-la comigo num abraço perdido no tempo e no espaço... E esquecer-me de tudo. EU ousei. Ousem.

Num grito, do Mondego para o Tejo - Quero-te sempre...